Vou te contar um segredo: eu não gosto do Natal. É uma data que, por si só, me deixa deprimido. Seria legal ver a família toda reunida, como ontem. Meus pais vivinhos, meus irmãos, esposa, cunhada, minhas filhas e todos os sobrinhos. Tão raro vê-los todos juntos! Mas não gosto de participar disto. Queria poder ver de longe, como quem assiste um filme. Acho que são muitas expectativas das crianças, muita voracidade alimentar de alguns adultos, muita ansiedade das cozinheiras da família (em busca da justa aprovação), além da escolha das roupas, dos penteados das crianças, dos vestidinhos que resolvem não caber no último instante... Parece aqueles filmes embolados de baixo orçamento, em que o câmera vai andando pela sala apertada, fazendo a imagem tremer. Ouve-se conversas pela metade, flagra-se pessoas fazendo comentários cruéis, às vezes contra você...
Tudo isto, que acontece todos os anos, já tinha sido suficiente para eu me jogar de roupa na cama, duas horas antes da ceia, e torcer para ser esquecido ali. Mas, para dar à noite um toque inesquecível, resolveu meu pai dar um esporro monumental na minha filha mais velha, na hora em tudo já se apagava. Um esporro daqueles que eu, até os 12 anos, levava uma vez por semana. Alto, berrado, desproporcional ao "crime" cometido, humilhante. O tipo de "souvenir" que ninguém quer levar de uma noite de Natal. Não culpo tanto o velho, como não posso culpar um urso de circo que um dia resolve se lembrar que é um urso e devora alguém da platéia. Ele agiu segundo a sua natureza. Eu o amo profundamente e passamos maravilhosos momentos nos últimos anos. Sei que ele estava cansado, com sono, tinha comido muito mais do que a sua diabetes recomenda. Mas foi, realmente, muito triste para mim e para minha esposa vermos nossa filha ser humilhada na noite do amor, da família e da fraternidade.
Não vou brigar com o meu velho, mas hoje pretendo ficar aqui no meu canto, longe do enterro dos ossos, longe do “espírito natalino”.
É isto...